28 de jul. de 2009

Ave Maria dos loucos

A ventania entrava por todas as portas da antiga catedral rastreando pesares e lamúrias há séculos espalhadas por entre os bancos. Trazia a notícia da chuva forte que viria em despedida do inverno. Sentei na direção da luminosidade para sentir o vento subir por minhas pernas, cercar meu corpo até levantar a mecha de cabelo que se soltara do grampo pendendo sobre meu rosto. Fechava os olhos e sentia todo o frescor da ventania.

Diante de mim, ocupando os bancos mais próximos do altar, um punhado de beatas rezava o terço num murmúrio compassado que lembraria um mantra, não fosse a voz destoante, mais alta e falada num quase dialeto, que parecia vir da fileira ao lado, próxima ao corredor que separa a matriz da biblioteca pública da cidade. Abri os olhos e discretamente procurei pela voz.

O homem com roupas sujas e desajeitadas, segurando um terço enorme que mais parecia uma corda, rezava a Ave Maria dos loucos. Apontava as beatas e, como se delas se queixasse, levava o indicador até a imagem de Jesus Cristo expressando toda sua inquietação em gestos contundentes. De repente levava as mãos à cabeça, esfregando com vigor como se quisesse dissipar sua confusão mental.

Fiquei pensando sobre a subjetividade daquele homem. O que o levaria a rezar? Que resquícios de compreensão, fé ou temor ele ainda mantinha? Então, olhei para as beatas e vi que algumas rezavam sem fervor, apenas num repetir mecânico de orações decoradas. Quantas vezes elas faziam aquilo por dia, por semana? O louco expressava mais verdade no seu clamor confuso.

Sossegado o vento, a chuva já desabava sobre os telhados e as ruas quando o homem do terço comprido levantou-se do banco e seguiu em direção a uma das portas da igreja. Olhou a chuva, voltou a falar com Jesus Cristo impávido em seu manto vinho sobre a túnica cor de areia e partiu. Voltei a ouvir o murmúrio das beatas e tentei recuperar minhas intenções de prece.

Havia ido ali rezar mesmo por quem? Egoisticamente por mim? Autruisticamente pelos outros? Demagogicamente pelo mundo? Deus reconhece as intenções. Quis deixar a mente esvaziar-se dos pensamentos como fazem os que meditam. Será que eles conseguem? Pensamentos têm vida própria e não costumam obedecer assim com facilidade.

Então fui direto ao assunto: eu. De novo? Disse Deus aqui dentro da minha cabeça. É, Senhor! Euzinha mesmo. E digo logo que nem sei por onde começar, portanto, paciência aí. Mas, a conversa foi tomando outro rumo. Quem era louco? O homem que rezava em dialeto alucinante, as beatas que faziam de conta ou eu que os observava? Senti que Deus riu e deixou por minha conta encontrar a resposta.

4 comentários:

saitica disse...

Bahhh...
Que belo texto ! Cheio de coração e verdades.
daniel

Márcia Corrêa disse...

Oi Daniel. Quem bom tê-lo aqui.

Camila Karina disse...

Gosto muito do teu blog, além das nossas idéias quase sempre baterem :)

Lindo esse texto.

E sobre o tal twitter, realmente é chato.

Beijos prima :*

Vássia Silveira disse...

Adorei teu texto, Márcia. Pelo visto a chave do sótão anda amarrada na sua cintura! (posso estar errada, mas acho que os loucos sempre têm razão).