15 de jun. de 2009

Marina Silva critica Lula e Dilma: "Estamos num retrocesso"


Marina Silva - “Estamos num retrocesso”
Autor(es): Matheus Leitão
Época - 15/06/2009

A ex-ministra diz que a MP sobre terras na Amazônia foi a pior iniciativa do governo Lula até hoje.
Desde 2008, quando deixou o ministério do meio Ambiente para reassumir sua cadeira no Senado, Marina Silva nunca escondeu suas críticas ao governo Lula. Mas ela admite que nunca esteve tão decepcionada como agora. A Medida Provisória 458, em sua opinião, vai beneficiar grileiros e grandes proprietários de terras na Amazônia. Numa entrevista de mais de uma hora a ÉPOCA, Marina Silva não só criticou o governo, mas também fez uma avaliação negativa das noções de desenvolvimento da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, candidata do presidente Lula a sua sucessão.

ENTREVISTA - MARINA SILVA

QUEM É Aos 51 anos, mãe de quatro filhos, Marina Silva está em seu segundo mandato como senadora pelo PT do Acre. Nasceu no Seringal Bagaço, comunidade a 70 quilômetros de Rio Branco, a capital acriana. Alfabetizou-se aos 14 anos no Mobral, foi empregada doméstica e formou-se em história pela Universidade Federal do AcreO QUE FEZFoi ministra do Meio Ambiente do governo Lula. Em 2007, foi apontada pelo jornal britânico The Guardian como uma das 50 pessoas que podem salvar o mundo. Recebeu da ONU o prêmio Champions of the Earth.

ÉPOCA – O Brasil precisa da produção agrícola. O agronegócio é incompatível com o meio ambiente?

Marina Silva – Podemos triplicar a produção sem derrubar mais florestas. É só usarmos as tecnologias existentes hoje, como as da Embrapa. É possível evitar o uso predatório dos recursos naturais nas atividades agrícolas. É possível criar uma nova narrativa, sem satanizar os produtores. É a nova economia, a do século XXI. Ela corrige e previne erros. Temos de chegar ao século XXI.

ÉPOCA – O meio ambiente é um obstáculo ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)?

Marina – O PAC é importante e estratégico para o desenvolvimento do país. Agora, mais que acelerar o crescimento é dar qualidade ao desenvolvimento. Nem sempre crescer significa melhoria da qualidade de vida das pessoas. O PAC, em si, não pode ser definido como bom ou ruim, depende de como será feito. Há uma visão açodada, que encara as questões ambientais como ações protelatórias. Aí, ele passa a ser problema. O PAC é importante, mas é igualmente importante que as obras a serem feitas tenham a sustentabilidade ambiental.

ÉPOCA – Qual é sua opinião sobre a ministra Dilma?

Marina – Não gosto de reducionismo. De pegar uma pessoa e dizer que ela é responsável isoladamente. Agora, se você me perguntar se a ministra Dilma tem uma visão de sustentabilidade ambiental nos mesmos termos que eu, diria que não. Ela ainda tem uma relação muito forte com a visão tradicional e antiga de desenvolvimento.

ÉPOCA – No governo, a senhora teve vários embates com ela sobre isso. A visão dela está ganhando?

Marina – Existe uma visão desenvolvimentista no governo e na sociedade. O que foi feito, mesmo na minha gestão, foi apenas um pequeno começo. Temos de ter uma matriz energética limpa, renovável e segura, estradas com baixo impacto, produção de biocombustível certificada, produção agrícola e de carne certificada. O caminho é esse, não há atalhos. Há um processo em disputa no governo e na sociedade. Um setor do governo tem muita dificuldade de lidar com esse conceito. O transgênico pode existir, mas tem de coexistir com as sementes normais. Isso só é possível com rastreabilidade e armazenagem separada. Mas, quando você diz isso, pronto! Você é contra o transgênico e contra a ciência. Se você quer uma agricultura, pecuária, exploração de madeira de forma sustentável, é rotulado de ser contra o desenvolvimento e o progresso. Estão em luta duas mentalidades, atitudes e visões de mundo. Que desenvolvimento o Brasil quer?

ÉPOCA – Alguns afirmam que a regularização fundiária na Amazônia, a MP 458, abriu uma brecha legal para atuação dos grileiros. Qual foi o papel do governo nisso?

Marina – Foi a pior iniciativa do governo até hoje. A MP era ruim na origem e ficou pior no relatório do deputado Asdrúbal Bentes. Os ministros Guilherme Cassel (Desenvolvimento Agrário) e Carlos Minc (Meio Ambiente) tentaram incluir salvaguardas, mas a proposta original já era ruim. As pequenas propriedades, de até 400 hectares, representam 80% do total, mas ocupam apenas 11,5% da área a ser regularizada. As médias e as grandes, que são apenas 20% do total, ocupam 88,5% da área. Permitiu-se que empresas e quem ocupa a terra por meio de prepostos sejam beneficiados. No projeto original, tanto o grande quanto o pequeno teriam de ficar dez anos, antes de poder revender.

ÉPOCA – A senhora disse que o dia da aprovação da MP foi o terceiro pior dia de sua vida. Por quê?

Marina – Foram mais de 30 anos de luta para evitar que a Amazônia virasse uma terra sem lei. Eu mesma vivenciei a luta de Chico Mendes para que o Acre não tivesse uma ocupação desordenada. O desmatamento do Acre hoje é em torno de 12% do território, enquanto em Rondônia é de 30%. Foi essa resistência que protegeu o Acre. Todo esse esforço não foi anulado, mas a MP não separou aqueles que apostaram na ilegalidade e na violência daqueles que têm direitos legítimos. Foi para isso que lutamos? Pensei em todos os que morreram lutando: Chico Mendes, irmã Dorothy, padre Josino. De 1999 a 2008, tivemos 5.384 conflitos de terras envolvendo 2,7 milhões de pessoas, 253 assassinatos, 256 tentativas de assassinatos e 1.377 ameaças de morte na Amazônia. A MP legitimou a grilagem de terra.

ÉPOCA – Por que a ofensiva está acontecendo agora? A senhora saiu do Ministério do Meio Ambiente dizendo que houve importantes avanços no setor. O que mudou?

Marina – Trabalhamos políticas estruturantes nos primeiros cinco anos. Diminuímos o desmatamento, que crescia de forma assustadora, de 27.000quilômetros quadrados em 2004 para 11.000 quilômetros quadrados em 2007. Apreendemos 1 milhão de metros cúbicos de madeira, o equivalente a um carro atrás do outro de São Paulo até o Rio de Janeiro. Mais de 700 pessoas foram presas. As estacas da legalidade estavam se firmando. Depois houve a reação e pressão para flexibilizar tudo. Começou dentro do próprio governo e em parte do Congresso.

ÉPOCA – As ofensivas coincidem com a gestão do ministro Carlos Minc?

Marina – Quando o ministro chegou, já havia uma tensão. O respaldo da sociedade deu ao presidente a chance de nomear um ambientalista. Deu fôlego ao governo. Depois houve uma avalanche contra o Ministério do Meio Ambiente. Uma proposta foi incluída na MP do Fundo Soberano – que caiu – que suspendia o licenciamento ambiental na ampliação de rodovias existentes. Outra medida foi a redução nas exigências de recursos para a compensação ambiental.

ÉPOCA – A senhora chegou a dizer que o ministro Mangabeira Unger fugiu do debate. O que quis dizer com isso?

Marina – O ministro Mangabeira é o coordenador do programa Amazônia Sustentável. Em várias oportunidades, foi convidado para vir às comissões tratar dos problemas da Amazônia. Não veio nem mandou representante. No dia da vigília, ele havia sido igualmente convidado, pois seria a entrega de 1 milhão de assinaturas pelo esforço dos artistas que se envolveram naquela mobilização, como Cristiane Torloni, Juca de Oliveira e Victor Fasano. Ora, quem está coordenando um programa de desenvolvimento sustentável para a Amazônia deveria estar interessado em receber esse respaldo. Os brasileiros não estão dizendo que querem a Amazônia como um santuário. Mas, sim, que há espaço para pecuária, agricultura, exploração florestal, turismo, uso da biodiversidade desde que se faça isso de forma sustentável. O ministro não veio.

ÉPOCA – Qual é sua principal divergência com ele?

Marina – Ele tem uma visão de que o que está hoje na Amazônia deve ser consumado e, daqui para a frente, se discute o resto. Não penso assim. Só podemos consumar o que é legal e certo. O que não é, vamos reparar. É assim que se faz o avanço institucional, o avanço civilizatório da humanidade. Estamos num retrocesso.

ÉPOCA – A senhora disse que o presidente Lula deu apoio a todas as medidas que resultaram em avanço. E agora? Ele está apoiando a ofensiva contra o meio ambiente?

Marina – Diante da gravidade do que está acontecendo, haverá necessidade de o presidente Lula puxar isso para si. Setores no Congresso Nacional propõem revogar a lei que criou a Política Nacional do Meio Ambiente, a lei que instituiu o Código Florestal Brasileiro e o decreto que trata do controle de poluição da indústria. Propõem revogar parcialmente o decreto que estabelece critério para o zoneamento ecológico e econômico e também a Lei nº 9.605, conhecida como lei de crimes ambientais, além do sistema nacional de unidades de conservação. Alguns setores se sentem à vontade para desconsiderar um esforço de mais de 20 anos. É uma ousadia. Querem mudar a lei, e não respeitá-la. O mundo inteiro olha para o Brasil. Se a MP 458 for promulgada como está, será um tiro de misericórdia em todos os avanços conquistados.

ÉPOCA – A senhora divulgou uma carta aberta ao presidente, algo público, mas foi alguém de confiança dele por muito tempo. A relação entre a senhora e ele está tão distante assim que não dá para dizer algo pessoalmente?

Marina – Nós nos conhecemos há 30 anos e temos uma relação de respeito, mas preferi uma carta aberta. Se a sociedade brasileira concordar, o presidente pode sentir respaldo para dizer: vamos vetar algumas partes. Os problemas não estarão todos resolvidos, mas será um atenuante. Tive uma experiência interessante no Congresso quando começou um movimento contra a mudança no Código Florestal. Quando o desmatamento foi para 29.000 mil quilômetros quadrados, o presidente Fernando Henrique Cardoso corajosamente editou a MP que aumentou a reserva legal de 50% para 80% da Amazônia. Depois, tentaram voltar atrás, mas eu recebi 35 mil e-mails. O palácio também. O presidente Fernando Henrique não cedeu. Ele se sentiu respaldado.

ÉPOCA – O ex-ministro Gustavo Krause disse que os ministros do Meio Ambiente tratam de uma questão central para a humanidade, mas periférica para os governos. Ele está certo?

Marina – Infelizmente, ela ainda é periférica para os governos, as empresas e vários setores da sociedade. Na crise econômica, várias empresas, como a Vale, cortaram a diretoria do meio ambiente. Esse debate não foi compreendido à altura. Os pesquisadores admitiram, em Bangcoc (Tailândia), que o problema do aquecimento global é dez vezes mais grave do que haviam anunciado. O Brasil pode liderar o processo de mudança. Há aí um paradoxo. Em plena ditadura, foi criado o Conama, um conselho deliberativo. O governo Sarney fez o programa Nossa Natureza, criou o Ibama, o presidente Fernando Henrique criou a lei de crimes ambientais, a ratificação das convenções da biodiversidade e do clima e a MP que aumentou para 80% a reserva legal na Amazônia. Aí, veio o presidente Lula, com plano de combate ao desmatamento, de Amazônia sustentável e mudanças climáticas. São processos cumulativos. É assim que se vai depurando a sociedade. O Brasil pode liderar a agenda ambiental e fazer jus à potência ambiental que é. O Brasil tem 45% de matriz energética limpa. Mas quem está liderando é a Inglaterra, com 4%.

Um comentário:

jac rizzo disse...

Márcia, tenho grande admiração
por suas preocupações!
Compartilho da mesma inquietação.
Sou absolutamente contra o desenvolvimento
a qualquer custo.Infelizmente estamos nas
mãos de um governo que olha obstinadamente
para um lado só.

Vamos gritar, fazer barulho, porque
eles já demonstraram que vieram para ficar.
A disposição é muito grande!

E a maioria das pessoas não se interessa por
nenhuma questão que envolva pensar e ler.

Sabe aquele 'ai, que preguiça'...
pois é! O caminho mais fácil é se omitir.

Somos amigas dessa floresta!!

Grande abraço!