21 de mar. de 2009

A cantora

Eram quase três horas da tarde quando saí do hospital debaixo de uma chuva tão fininha que nem molhava o vento. Tentava fazer parar os pensamentos, ignorar o cansaço e fingir que a cabeça não doía quando estacionei meu carro, embebedado de respingos da lama da cidade mal cuidada, numa réstia de sombra próxima ao restaurante self-service.

Àquela altura certamente encontraria comida sofrível e funcionários com ar de desânimo, de olhos injetados no porvir das horas. Dito e feito. Mais que isso, não havia nenhum freguês do salão, a não ser a cantora e o músico numa conversa sonolenta em volta de uma mesa de canto. Mas, a fome e a tentativa frustrada de comer a comida sem gosto do hospital pediam alento.

Salada e camarão pareciam despertar o paladar. Sentei num canto – não sei por que tenho mania de cantos – quando percebi o movimento da cantora e do músico às minhas costas. Arrumaram-se no fundo do salão e puseram-se a executar seu trabalho. Só pra mim? Pensei rapidamente e em seguida troquei de lugar para olhá-los de frente. Tocar e cantar para uma única pessoa e ainda de costas, que cena mais deprimente seria.

Começou com a canção Sereia, de Lulu Santos, marcada nas vozes de Maria Bethânia e de Fafá de Belém. “... vejo a face luminosa do amor, as ondas vão e vem, e vão e são como o tempo...”. Tentava dar atenção aos artistas enquanto a comida descia devagar, sem muito gosto. A cantora enfadada olhava para o alto, para as mesas vazias e de vez em quando esboçava um sorriso meio sem jeito em minha direção. O músico dedilhava o violão como se sua alma houvesse esquecido ali aquelas mãos ensaiadas.

No final da canção, arrumei os talheres no prato e aplaudi. Ouvi o eco das minhas palmas na sala e gostei do brilho no olhar dos artistas. Espichei o que pude o tempo ali, ouvindo uma sequência de sambas de morro enquanto empurrava o prato e bebia bem devagar a limonada. Mais não deu. Acenei para os dois e parti deixando para trás a certeza de que a luz que reluz nos olhos dos artistas é chama apagada sem o calor de sua platéia.

(Tela: Fever, de Trish Biddle)


Um comentário:

Anônimo disse...

Márcia, acho que vais ganhar trilhões de indicações como essa, mas também incluí teu blog (porque gosto muito) pra ganhar um selo...pega lá no meu ok, como manda a regra..rsss