Por Gaudêncio Torquato
Um dos mais belos espetáculos da natureza pode ser visto na Região Norte do País. Ali, onde ocupam lugar a maior bacia hidrográfica e 33% das florestas tropicais do planeta, o Rio Amazonas trava diariamente uma batalha contra o Oceano Atlântico. De tão caudaloso, o Amazonas consegue que sua foz, ao contrário de outros rios, empurre a água do mar por muitos quilômetros. Mas o oceano espera sua vez. Na fase de Lua Nova, vence a resistência do rio e reverte o movimento. O choque entre as águas forma ondas de até cinco metros, que avançam Amazonas adentro, derrubando árvores e até modificando o leito do rio. O fenômeno chama-se pororoca e é mais intenso entre janeiro e maio. Pois bem, no início de 2010 é bem provável que o País comece a ver uma pororoca diferente, nascendo naquela paisagem e se espraiando pelos estuários rasos dos rios de todos os Estados, sob o nome de Marina. O fenômeno resultará do encontro entre o rio da senadora Marina Silva e as águas dos mares do Sul e Sudeste, canalizadas pelos dois nomes - da situação e da oposição - que disputarão o pleito presidencial.
A eventual candidatura da política acreana à Presidência da República pelo Partido Verde (PV), por conta do simbolismo que seu perfil expressa, pode vir a ser o fato novo capaz de alterar o leito da campanha presidencial, quebrando a polarização entre os candidatos da situação e da oposição, Dilma Rousseff e José Serra ou Aécio Neves. Marina abriria o leque de ofertas, entronizando no mastro central do País a bandeira da sustentabilidade ambiental e da economia verde, cujo apelo é particularmente forte em parcelas de classes médias de centros urbanos mais desenvolvidos, setores culturais e artísticos, núcleos de formação de opinião e contingentes jovens, avessos aos mantras bolorentos da política. Os efeitos da participação da senadora no palco eleitoral podem ser avaliados sob as perspectivas da estética, da semântica e da movimentação partidária. Sob qualquer prisma, sua candidatura causará impacto, considerando que é carismática e intérprete, seguramente a mais importante do País, do conceito do desenvolvimento sustentável de Nação.
A começar pelo plano estético e fundo histórico, emergirá na paisagem uma figurinha frágil, com história pontuada de dores e sofrimento, sobrevivente de catástrofes ambientais, eis que superou doença neurológica provocada pela contaminação de metais pesados. Carrega um drama que mexe com o coração e a cabeça das pessoas. Emoção e razão se juntam na vida dessa filha de seringueiros, que só aprendeu a ler aos 14 anos, ficou órfã de mãe aos 16, trabalhou como empregada doméstica e sonhou ser freira. Diferentemente de Lula, que também veio do andar de baixo da pirâmide social, frequentou os bancos universitários, formando-se em História. Abrigando-se nos movimentos sociais, galgou ao patamar da política, no Acre, exercendo os cargos de vereadora e deputada estadual. Hoje mais parece um corpo estranho no Senado, pela carga asséptica que denota na expressão e nas atitudes. A aparência de água cristalina espelhada por Marina se acentua nestes tempos de lamaçal político. Se a percepção estética é a primeira a chamar a atenção das massas, seu porte simples e despojado será um diferencial em relação a Dilma, bem mais composta e cosmetizada. Com linguagem suave e menos bombástica do que a ex-senadora Heloísa Helena, não parece tão improvisada e esportiva como a alagoana, sempre vista com a farda da camiseta branca e calça jeans.
Na perspectiva semântica, ouviremos a tônica de que "a defesa do meio ambiente deve permear os aspectos da vida econômica, política e social, e sua preservação tem de estar ligada à dinâmica do desenvolvimento". A mensagem é de pouca compreensão para as massas? Sim. Marina Silva, com a feição de mulher sofrida, alcançará melhor resultado nos segmentos médios, urbanos e racionais. São estes que captam melhor a chama futurista do discurso sobre preservação do meio ambiente e desenvolvimento com sustentabilidade. As massas, por sua vez, clamam por demandas imediatas e materiais: dinheiro no bolso, casa própria, alimento barato, transporte rápido, serviços de saúde acessíveis, etc. Com o eixo da sustentabilidade ambiental, que já pontua a linguagem de mandatários importantes como Barack Obama, a mensageira de vida melhor põe tempero verde no feijão nosso de todo dia. Identifica-se, assim, com o salto civilizatório. O bordão preservacionista, vale lembrar, alimenta o discurso da social-democracia em vastos rincões mundiais. No Brasil, esse tempero de sabor silvestre tende a engrossar o caldo de todas as classes.
Quanto à operação político-eleitoral, a pororoca Marina Silva deverá provocar ondas que impactarão alianças políticas nas esferas federal e estadual, a começar por São Paulo, onde Lula pretende apresentar Ciro Gomes como candidato do PT ao governo. Se Marina confirmar a candidatura, o deputado do PSB garante que entrará no páreo. Qual é sua lógica? Empurrar a campanha para o segundo turno. Se ele conseguir 10% dos votos e Marina mais 10%, a soma de ambos poderá ser decisiva na segunda rodada. Mas há um detalhe: a colheita de Marina entra mais na seara de Dilma do que na roça de Serra. No Rio de Janeiro, Fernando Gabeira é outra peça a ser mexida no tabuleiro verde. Pode escolher entre o Senado e o governo. E nos outros Estados, com quem o PV fará aliança? O fato é que em 2010 a cor verde deverá colorir os palanques, ao lado da cor vermelha (petista) e azul/amarela (tucanos), e eventualmente a cor vermelha/amarela do PSB. Mas a simbologia amazônica será o destaque. Pascal lapidou a frase: "O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante.
"Marina Silva é a própria imagem do caniço pensante. Sua candidatura é um compromisso com ideias. Pode até faltar-lhe estrutura de campanha. Sobrará uma visão altaneira da vida como deve ser vivida. Se o recado for dado, isso lhe bastará.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação.
Um dos mais belos espetáculos da natureza pode ser visto na Região Norte do País. Ali, onde ocupam lugar a maior bacia hidrográfica e 33% das florestas tropicais do planeta, o Rio Amazonas trava diariamente uma batalha contra o Oceano Atlântico. De tão caudaloso, o Amazonas consegue que sua foz, ao contrário de outros rios, empurre a água do mar por muitos quilômetros. Mas o oceano espera sua vez. Na fase de Lua Nova, vence a resistência do rio e reverte o movimento. O choque entre as águas forma ondas de até cinco metros, que avançam Amazonas adentro, derrubando árvores e até modificando o leito do rio. O fenômeno chama-se pororoca e é mais intenso entre janeiro e maio. Pois bem, no início de 2010 é bem provável que o País comece a ver uma pororoca diferente, nascendo naquela paisagem e se espraiando pelos estuários rasos dos rios de todos os Estados, sob o nome de Marina. O fenômeno resultará do encontro entre o rio da senadora Marina Silva e as águas dos mares do Sul e Sudeste, canalizadas pelos dois nomes - da situação e da oposição - que disputarão o pleito presidencial.
A eventual candidatura da política acreana à Presidência da República pelo Partido Verde (PV), por conta do simbolismo que seu perfil expressa, pode vir a ser o fato novo capaz de alterar o leito da campanha presidencial, quebrando a polarização entre os candidatos da situação e da oposição, Dilma Rousseff e José Serra ou Aécio Neves. Marina abriria o leque de ofertas, entronizando no mastro central do País a bandeira da sustentabilidade ambiental e da economia verde, cujo apelo é particularmente forte em parcelas de classes médias de centros urbanos mais desenvolvidos, setores culturais e artísticos, núcleos de formação de opinião e contingentes jovens, avessos aos mantras bolorentos da política. Os efeitos da participação da senadora no palco eleitoral podem ser avaliados sob as perspectivas da estética, da semântica e da movimentação partidária. Sob qualquer prisma, sua candidatura causará impacto, considerando que é carismática e intérprete, seguramente a mais importante do País, do conceito do desenvolvimento sustentável de Nação.
A começar pelo plano estético e fundo histórico, emergirá na paisagem uma figurinha frágil, com história pontuada de dores e sofrimento, sobrevivente de catástrofes ambientais, eis que superou doença neurológica provocada pela contaminação de metais pesados. Carrega um drama que mexe com o coração e a cabeça das pessoas. Emoção e razão se juntam na vida dessa filha de seringueiros, que só aprendeu a ler aos 14 anos, ficou órfã de mãe aos 16, trabalhou como empregada doméstica e sonhou ser freira. Diferentemente de Lula, que também veio do andar de baixo da pirâmide social, frequentou os bancos universitários, formando-se em História. Abrigando-se nos movimentos sociais, galgou ao patamar da política, no Acre, exercendo os cargos de vereadora e deputada estadual. Hoje mais parece um corpo estranho no Senado, pela carga asséptica que denota na expressão e nas atitudes. A aparência de água cristalina espelhada por Marina se acentua nestes tempos de lamaçal político. Se a percepção estética é a primeira a chamar a atenção das massas, seu porte simples e despojado será um diferencial em relação a Dilma, bem mais composta e cosmetizada. Com linguagem suave e menos bombástica do que a ex-senadora Heloísa Helena, não parece tão improvisada e esportiva como a alagoana, sempre vista com a farda da camiseta branca e calça jeans.
Na perspectiva semântica, ouviremos a tônica de que "a defesa do meio ambiente deve permear os aspectos da vida econômica, política e social, e sua preservação tem de estar ligada à dinâmica do desenvolvimento". A mensagem é de pouca compreensão para as massas? Sim. Marina Silva, com a feição de mulher sofrida, alcançará melhor resultado nos segmentos médios, urbanos e racionais. São estes que captam melhor a chama futurista do discurso sobre preservação do meio ambiente e desenvolvimento com sustentabilidade. As massas, por sua vez, clamam por demandas imediatas e materiais: dinheiro no bolso, casa própria, alimento barato, transporte rápido, serviços de saúde acessíveis, etc. Com o eixo da sustentabilidade ambiental, que já pontua a linguagem de mandatários importantes como Barack Obama, a mensageira de vida melhor põe tempero verde no feijão nosso de todo dia. Identifica-se, assim, com o salto civilizatório. O bordão preservacionista, vale lembrar, alimenta o discurso da social-democracia em vastos rincões mundiais. No Brasil, esse tempero de sabor silvestre tende a engrossar o caldo de todas as classes.
Quanto à operação político-eleitoral, a pororoca Marina Silva deverá provocar ondas que impactarão alianças políticas nas esferas federal e estadual, a começar por São Paulo, onde Lula pretende apresentar Ciro Gomes como candidato do PT ao governo. Se Marina confirmar a candidatura, o deputado do PSB garante que entrará no páreo. Qual é sua lógica? Empurrar a campanha para o segundo turno. Se ele conseguir 10% dos votos e Marina mais 10%, a soma de ambos poderá ser decisiva na segunda rodada. Mas há um detalhe: a colheita de Marina entra mais na seara de Dilma do que na roça de Serra. No Rio de Janeiro, Fernando Gabeira é outra peça a ser mexida no tabuleiro verde. Pode escolher entre o Senado e o governo. E nos outros Estados, com quem o PV fará aliança? O fato é que em 2010 a cor verde deverá colorir os palanques, ao lado da cor vermelha (petista) e azul/amarela (tucanos), e eventualmente a cor vermelha/amarela do PSB. Mas a simbologia amazônica será o destaque. Pascal lapidou a frase: "O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante.
"Marina Silva é a própria imagem do caniço pensante. Sua candidatura é um compromisso com ideias. Pode até faltar-lhe estrutura de campanha. Sobrará uma visão altaneira da vida como deve ser vivida. Se o recado for dado, isso lhe bastará.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação.
Um comentário:
Belo texto. Adorei!
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