28 de nov. de 2008

O que vem do Norte: Walter Freitas

Há quase trinta anos o ouvi pela primeira vez, foi num teatro ao lado de três grandes artistas, meus amigos. Foi ali, naquele momento, que mais entendi muitas coisas que via, ouvia e convivia nas minhas andanças pelo interior da região exercendo minha profissão de sustento. Naquele instante, com surpresa e encantamento, fiquei frente a frente com um dos trabalhos mais originais e instigantes que já ouvi na música brasileira. Um dos mais contemporâneos e importantes da Amazônia e do Brasil.

Era como se estivesse diante de uma entidade. Foi avassalador, não havia nada parecido. Uma estridência, como vozes de tudo que vive na floresta e nos rios, naquela sonoridade. A harmonia, o ritmo, o andamento, uma surpresa inesperada atrás da outra. As letras, quase um dialeto; linguagem reconstruída ou rearrumada a partir da oralidade amazônica e do som das palavras e expressões colhidas da formação cultural, da nossa mistura étnica e racial. Um ajuntamento de vivências e modos vindos de todos os tempos. Viola e violão tocados com precisão incomum e uma voz que passeava também pelo falsete com naturalidade vibrando na possibilidade de cada canção deixada dentro da gente.

Foi emocionante e definitivo. Ali na minha frente estava um Mestre, mostrando com sua obra e seu jeito de apresentá-la o que não imaginava possível reunir na criação; limpidez, diferenciamento e originalidade construída na complexidade e na sofisticação da simplicidade. Tudo ali, uma sagração do homem, da sua história e da natureza nas suas maiores e menores partes. O som da exuberância e do mais comum do cotidiano da Amazônia, da maneira de falar e se contar dos caboclos ribeirinhos, seus habitantes.

Assim comecei a conhecê-lo e conhecer sua obra - formato próprio e atemporal vestida de uma dinâmica surpreendente, em harmonias cheias de sutilezas e compassos inusitados entrecortados pela sonoridade das palavras recheadas de termos, oralidades, modos, encantarias e expressões cunhadas pelos povos que aqui se misturaram ao longo do tempo e por suas histórias nem sempre pacíficas.

Compositor, instrumentista e cantor, escritor, dramaturgo, poeta, jornalista e arquiteto paraense, amazonida e brasileiro.

Um Mestre - humanista quando escreve pra teatro, quando fala em sua poesia, de injustiças, de pessoas que se comprometem com a luta por mais igualdade, humanidade e dignidade, quando se coloca em defesa da natureza com a intimidade de quem traduz seus sons. Jornalista aguerrido e conceituado sempre exerceu a profissão sem abrir mão do que pensa, de seu conhecimento cultural e de sua sensibilidade.

Poucos artistas se aprofundaram tanto em seu ofício e produziram obra tão complexa, seja na linguagem musical, na oralidade ou em sua percepção dos modos amazônicos. Poucos influenciaram tanto e tão naturalmente.

Sua música é um canto que ressoa de dentro da floresta, de dentro dos rios, de dentro da realidade ribeirinha. Pegam a gente por um lado inesperado, parece sentimento moído pelo tempo e sem tempo no tempo. Parece suspenso no ar. Um inesperado que as vezes choca, as vezes tem a brandura das águas silenciosas e as vezes a própria linguagem delas em fúria. E ressoa... ressoa num canto em que os tons são absolutamente naturais, o timbre parece conter ora o penetrante de um grito, ora o momento mais íntimo de tudo que vive e sussurra o mais temporal cotidiano da Amazônia.

A importância do seu trabalho vai varar o tempo, vai influenciar mais do que já faz agora e sua força e limpidez restará para muitas gerações. Por isso é recomendado para quem quer conhecer a sonoridade da Amazônia em sua mais profunda percepção.

À benção Walter Freitas.

Obrigado Mestre.

Marcos Quinan

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