20 de fev. de 2009

Todas as vidas

Nessa manhã de chuva abafada encontrei frescor nos versos de Cora Coralina, que pousaram levemente na página sempre aberta do Abaribó, blog do querido poeta Marcos Quinan: www. abaribo.blogspot.com. Lá, ela fala sobre "saber viver". Então, nesse dia que me acordou melancolias, fui buscar em Cora aquilo que também habita em mim. Beijos no céu de Coralina.


Todas as vidas


"Vive dentro de mim

uma cabocla velha

de mau-olhado,

acocorada ao pé

do borralho,

olhando para o fogo.

Benze quebranto.

Bota feitiço...

Ogum. Orixá.

Macumba, terreiro.

Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim

a lavadeirado

Rio Vermelho.

Seu cheiro gostoso

d'água e sabão.

Rodilha de pano.

Trouxa de roupa,

pedra de anil.

Sua coroa verde

de São-caetano.

Vive dentro de mim

a mulher cozinheira.

Pimenta e cebola.

Quitute bem feito.

Panela de barro.

Taipa de lenha.

Cozinha antiga

toda pretinha.

Bem cacheada de picumã.

Pedra pontuda.

Cumbuco de coco.

Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim

a mulher do povo.

Bem proletária.

Bem linguaruda,

desabusada,

sem preconceitos,

de casca-grossa,

de chinelinha,

e filharada.

Vive dentro de mim

a mulher roceira.

-Enxerto de terra,

Trabalhadeira.

Madrugadeira.

Analfabeta.

De pé no chão.

Bem parideira.

Bem criadeira.

Seus doze filhos,

Seus vinte netos.

Vive dentro de mim

a mulher da vida.

Minha irmãzinha...

tão desprezada,

tão murmurada...

Fingindo ser alegre

seu triste fado.

Todas as vidas

dentro de mim:

Na minha vida

- a vida mera

das obscuras!"



Cora Coralina

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