11 de set. de 2011

Cante pra mim de novo...


De volta ao Acre, mais fundo na história de sua gente, fui reencontrar na memória a conversa preciosa com dona Vicência, na pensão onde ela serve a melhor galinha caipira de Xapuri. Aos 82 anos, mulher franzina e forte ao mesmo tempo, transpira saudade. Partiu menina, aos 14 anos, de um lugar chamado Alto Santo no Ceará, para se embrenhar na floresta Amazônica como soldada da borracha.
Veio com os pais e mais nove irmãos para o seringal São Francisco do Iracema, a 12 horas de barco partindo de Xapuri, mais quatro horas caminhando pelo varadouro. Uma família inteira entre os quase 60 mil brasileiros recrutados pelo governo de Getúlio Vargas para a produção da borracha na Amazônia, que servira para atender aos países aliados na II Guerra Mundial.
E dona Vicência ainda se move pelo sentimento patriótico que a propaganda getulista lhe plantou no coração. Comove ver sua ingênua pujança ao cantar, inteiro, com a sofrida voz rouca e baixa, o longo Hino do Soldado da Borracha: “Soldados feridos, mas sempre invencíveis. Crentes caminhando rumo ao céu. Rostos flamejantes, como a própria luz, estes são soldados de Jesus”, diz a letra. Cerca de 31 mil morreram de malária ou vitimados pela jornada de trabalho desumana.
Descreve a despedida dos parentes no Ceará, lencinhos brancos acenando do convés do navio do Lloyd Brasileiro, peito inflado de amor à pátria e a cabeça cheinha de ilusões. Ganhar meio dólar por dia e viver longe da seca, essa era a promessa. Dona Vicência ainda canta a canção da saudade de quem ficou no porto. Saudade que também sente do marido, acreano Raimundo Girão, com quem teve cinco filhos na colocação Belo Monte. Saudade até da vida no seringal.
Passei por sua vida, baú de riqueza humana, como tantos jornalistas passaram, curiosos das histórias brasileiras e encantados com os personagens que a povoam. “Soube que apareci na TV do mundo todo”, conta ela sem nunca ter assistido às entrevistas que concede aos documentaristas internacionais. Mas, foi uma conversa que tivemos, e conversa é coisa de vizinho. Tanto que ela foi me levar à porta, segurando meu braço com gentileza pra contar ainda uma última passagem, a dos lencinhos brancos.
Atravessei a floresta, de volta pra casa, com dona Vicência no coração. Será que ainda a verei naquela pensão? Eita vizinhança marcada pela lonjura, que se não fosse tanta mata e tanto rio ia ali agorinha esticar mais um dedo de prosa com ela. Dona Vicência, como era mesmo a canção da despedida? Acabei por não anotar a letra, tanto que fiquei emocionada com o sentimento que nela resistia. Cante pra mim de novo...

3 comentários:

Almanacre disse...

Que bom que existam pessoas como você, Márcia Corrêa, que fez de um encontro casual com dona Vicência, em Xapuri (Acre) um texto emotivo, belo e verdadeiro. Eu testemunhei o tempo tão curto que você teve para conhecer Dona Vicência,uma orquídea cearense-acreana, mas a descreveu tão bem!
Só quem onsegue se deter e emocionar com o singelo consegue isso.

Anônimo disse...

Márcia Corrêa,

Fiquei motivado a lhe escrever após leitura sobre sua estada em Xapuri(AC) e seu encontro com minha conterrânea Vicência.

Nasci em Alto Santo(CE), faz 54 anos, hoje moro em Fortaleza, e também tive um parente - Fernando Bessa Nogueira, irmão de meu pai, que fez essa mesma viagem sem volta, na mesma época, só que para Santarém.

Se ela tivesse(?) e-mail iria comunicar-me com ela, certamente conheceu e conviveu com meus parentes aqui no Ceará.

Não sei como, tornei-me leitor do Blog das irmãs Cavalcante - Alcinéa e Alcilene, e, por consequência, do seu.

Visito também o Porta-Retrato, do João Lázaro.

Gosto muito do Movimento Poesia na Boca da Noite. Foi lá que lhe conheci. Agora, tornei a vê-la na noite do Zoth, na casa da irmã Alcinéa. Tudo isso através do Blog dela.

Ainda não pude ouví-la no seu programa matinal. Pesquisei e não obtive sucesso.

Quando for novamente a Xapuri ou caso tenha mais informações sobre D. Vicência, por favor publique em seu prestigiado Blog.

Um forte abraço e sucesso no que faz.

Fábio Nogueira - FORTALEZA(CE)

Mara disse...

Ola!
Sou de Sao Paulo e tambem tive o grande prazer de conhecer esta senhora tao gentil. Dona Vicenza e uma lenda viva e seu resturante, em minha opiniao, o melhor de comida caseira que eu ja experimentei em minha vida. Que bom que voce divulgou um pouco da vida desta grande guerreira!